Aqui há uns anos, era eu um jovem, juntei-me a alguns amigos e começámos juntos o Andanças. O festival que começou com duas centenas de pessoas, era a realização de uma utopia de cultura participativa, mais do que um festival de dança. As primeiras equipas que organizaram o Andanças eram pessoas que pouco ou nada tinham a ver com a dança, pelo que essa filosofia era intuitivamente assumida por todos; a alegria e energia que nos movia a todos era a de um grupo de amigos que faz algo em conjunto de positivo, de optimista e com a intenção de mudar algumas mentalidades. A dança foi o pretexto, o meio para atingir outro fim. A finalidade era realizar um evento cultural onde cada um participava activamente, não se limitando a ser o espectador passivo da cultura dos nossos dias. Relativamente à música e à dança também havia objectivos: queríamos começar em Portugal uma revolução que aconteceu em França, Inglaterra, Irlanda, Itália e Espanha há dezenas de anos e que reinventou a música tradicional (ou se quiserem de raiz tradicional) e lhe deu outra vida. Lá como cá, a dança estava cristalizada nos grupos de folclore e a música estava na memória de muito poucos ou esquecida nas prateleiras bolorentas dos museus de etnografia. Esta revolução “revivalista” como lhe chamam os franceses, passou essencialmente pela recuperação das danças e dos instrumentos tradicionais e pela reinterpretação dos velhos temas tradicionais e composição de novos temas, muitos deles para danças que já existiam.
Pela inexistência em Portugal de grupos que fizessem baile fora do universo do Folclore ou da música Pimba, no primeiro Andanças vieram dois grupos, um de França e outro da Catalunha; trazer grupos estrangeiros para o Andanças foi num primeiro momento obrigatório pela inexistência de alternativa em Portugal, e numa segunda fase, muito importante para deixar o bichinho da música: não se pode convencer as pessoas a tocar um instrumento por decreto. Só pela retransmissão natural deste gosto é que a coisa funcioana, e neste caso ter muitos músicos, mesmo que estrangeiros, a tocar em todo o lado e a qualquer momento contribui para deixar a semente da música pelas nossas paragens. Mais tarde, com o Encontro de tocadores (agora chama-se Tocar de ouvido), este propósito ganhou os contornos desejados desde o o início do Andanças, e a revolução começou a dar passos firmes na direcção certa. Agora, o objectivo tinha passado de despertar o gosto pela música para estar centrado nos instrumentos portugueses. Enquanto que instrumentos como a concertina ou a viola braguesa continuavam a ser tocados por muitos, outros instrumentos como a viola campaniça ou a flauta de tamborileiro estavam em declínio assentuado, e foi a partir do encontro de tocadores que esta situação se inverteu; eu sou uma “vítima” desta dinâmica, e comecei a tocar flauta de tamborileiro e travesso depois destes eventos. Adiante.
Ao longo dos anos começou a haver grupos Portugueses, mas poucos fizeram o que seria de esperar: pegar no que é nosso e subverter a coisa de fio a pavio. É que na prática, o que hoje conhecemos como música irlandesa, francesa ou bretã é na sua esmagadora maioria música de autor, e seria de esperar que em Portugal, depois de se perceber a lógica da coisa, os músicos fizessem o mesmo; a nosso favor temos músicas que no seu estado puro são de uma beleza incomparável (do que ouvi, o mesmo não se passava com a música francesa, catalã ou irlandesa, em que as recolhas são muito duras de ouvir). Contra nós temos meio século de maturação das músicas e danças dos outros países, pelo que é muito mais fácil replicar o que já está feito, seja um Gigue irlandês ou uma Bourrée francesa. Difícil é pegar num “Verde Gaio” e dar-lhe a volta, compor uma “Chula” e fazer com que a dança funcione ou reinventar os “Viras”. Mas o prazer que dá tocar e dançar o que é nosso é indescritível. Eu, que sei muito mais músicas e danças Francesas que Portuguesas sou disso testemunha.
Não quero agora começar uma cruzada contra o Trad estrangeiro, perseguindo, combatendo e aniquilando os infieis; mas a verdade é que mais de dez anos depois do Andanças ter começado, a revolução está coxa: os grupos Portugueses juntos, agrupando os alinhamentos todos de cada grupo, devem tocar na totalidade 15% de música e danças Portuguesas, o que é francamente pouco. E claro, esta situação não mudará por decreto; por isso, eu pessoalmente radicalizo a minha postura: toda a energia que dedico à música é 100% para a música Portuguesa, porque é nesse domínio que sinto estar a partir pedra, a inovar a tradição, e o prazer que tenho ao fazer isto é para mim uma descoberta inesperada, com sensações surpreendentes: meia hora de “toques à desgarrada” com as velhas de Caçarelhos (Trás os Montes) equivalem a trinta horas de “jam” nos festivais da Europa. Essa é que é essa. Como se a nossa música fizesse vibrar em mim a corda da identidade cultural; é uma sensação estranha, quase mística, mas de uma força e paixão avassaladora. E é essa paixão que eu sei que posso transmitir aos outros, com alguma radicalidade (afinal trata-se de música de raiz), muita energia, algum optimismo e a imensa alegria de celebrar a cada nota um património que em definitiva já não está morto. Apesar de tudo, a revolução está em marcha, a música e dança “pós-tradicional” já está na rua.